Autorregulação Setorial na LGPD: Como Associações Empresariais Podem Moldar o Futuro da Proteção de Dados no Brasil
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), Lei nº 13.709/2018, representa um marco regulatório para a proteção de dados pessoais no Brasil. Entre suas diversas disposições, o artigo 50 merece especial atenção por estabelecer a possibilidade de autorregulação setorial através da formulação de regras de boas práticas e governança. Este dispositivo abre caminho para que controladores e operadores, individualmente ou por meio de associações, desenvolvam normas específicas adaptadas às peculiaridades de seus setores, criando um importante mecanismo de governança colaborativa na proteção de dados.
O artigo 50 da LGPD estabelece que:
“Os controladores e operadores, no âmbito de suas competências, pelo tratamento de dados pessoais, individualmente ou por meio de associações, poderão formular regras de boas práticas e de governança que estabeleçam as condições de organização, o regime de funcionamento, os procedimentos, incluindo reclamações e petições de titulares, as normas de segurança, os padrões técnicos, as obrigações específicas para os diversos envolvidos no tratamento, as ações educativas, os mecanismos internos de supervisão e de mitigação de riscos e outros aspectos relacionados ao tratamento de dados pessoais.”
Este dispositivo representa uma abordagem inovadora no contexto regulatório brasileiro, pois reconhece a importância da autorregulação como complemento à regulação estatal. Ao permitir que associações empresariais estabeleçam regras de boas práticas, a LGPD adota um modelo de governança que valoriza o conhecimento técnico e setorial, promovendo uma proteção de dados mais efetiva e contextualizada.
As associações empresariais ocupam posição privilegiada para a elaboração de regras de boas práticas por diversas razões, como conhecimento setorial, uniformização, representatividade e legitimidade.
As associações reúnem empresas com desafios e necessidades semelhantes, possibilitando a identificação precisa das particularidades do setor em relação ao tratamento de dados pessoais. Este conhecimento especializado permite a criação de regras que atendam às especificidades técnicas e operacionais de cada segmento.
A elaboração coletiva de regras de boas práticas proporciona economia de recursos, especialmente para pequenas e médias empresas que, individualmente, teriam dificuldades para desenvolver programas robustos de governança em proteção de dados.
A adoção de regras comuns promove a uniformização de práticas no setor, criando um ambiente de maior segurança jurídica e previsibilidade tanto para as empresas quanto para os titulares de dados.
As associações, ao representarem um conjunto significativo de empresas do setor, conferem maior legitimidade às regras estabelecidas, facilitando sua aceitação pelos agentes reguladores e pelo mercado.
O artigo 50 da LGPD estabelece um amplo escopo para as regras de boas práticas, que podem abranger definição de estruturas organizacionais adequadas para a proteção de dados, incluindo a posição e as atribuições do Encarregado de Dados (DPO) e a composição de comitês de privacidade, procedimentos e canais para atendimento dos titulares, definições de requisitos mínimos de segurança da informação adequados ao setor, responsabilidade de controladores e operadores, ações educativas com programas de capacitação e promoção da cultura de proteção de dados, processos de auditorias e gestão de riscos.
A existência de diretrizes específicas para o setor facilita a implementação de programas de compliance mais eficientes e adequados à realidade das empresas, resultando em diferencial competitivo para os associados.
Outro importante benefício aos associados é o fato de que a implementação de regras de boas práticas pode ser considerada como atenuante em caso de incidentes, demonstrando a adoção de medidas preventivas adequadas.
A autorregulação setorial em proteção de dados não é uma novidade no cenário internacional. O Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) europeu, que inspirou a LGPD, também prevê a possibilidade de códigos de conduta setoriais.
Na União Europeia, diversos setores já desenvolveram códigos de conduta aprovados pelas autoridades de proteção de dados, como o código para provedores de serviços em nuvem e o código para o setor de saúde. Estas experiências demonstram que a autorregulação setorial pode ser um complemento eficaz à regulação estatal.
No Brasil, a ANPD tem a competência para estimular a adoção de padrões técnicos que facilitem o controle pelos titulares de seus dados pessoais, bem como para reconhecer e divulgar regras de boas práticas e de governança. A expectativa é que, com a consolidação da atuação da ANPD, surjam diretrizes mais claras sobre o processo de reconhecimento e validação das regras setoriais.
O artigo 50 da LGPD representa uma oportunidade significativa para que associações empresariais assumam protagonismo na construção de um ambiente de proteção de dados mais seguro e adaptado às realidades setoriais.
A formulação de regras de boas práticas não apenas contribui para o cumprimento da legislação, mas também para a criação de uma cultura de proteção de dados que beneficia empresas e titulares.
A autorregulação setorial, quando bem implementada, complementa a regulação estatal, criando um sistema de governança mais eficiente e contextualizado. Para que este potencial se concretize, é fundamental que as associações empresariais assumam esta responsabilidade com seriedade, desenvolvendo regras que equilibrem adequadamente os interesses econômicos e os direitos fundamentais à privacidade e à proteção de dados pessoais.
Em um cenário de crescente digitalização e uso intensivo de dados, a capacidade de estabelecer e seguir boas práticas setoriais será cada vez mais um diferencial competitivo e um indicador de maturidade organizacional.
As associações empresariais que souberem aproveitar esta oportunidade estarão contribuindo não apenas para seus associados, mas para a construção de um ecossistema digital mais ético e responsável.