Serviços de Internet e os direitos do Consumidor em tempos de COVID-19

A pandemia de COVID-19 mudou o status quo e gerou uma série de desestabilizações em sistemas organizados, como o de serviços de internet.

O serviço de internet é de fato uma combinação entre dois serviços de diversos e sujeitos a tratamento legal diferenciado, o SCM (Serviço de Comunicação Multimídia), espécie de telecomunicações, regulado pela Anatel, prestado no regime privado e o SVA-conexão (Serviço de Valor Adicionado de acesso), de natureza jurídica comum.

Inicialmente, a partir de 1995, quando do advento da privatização das telecomunicações e início da internet comercial, os provedores de internet prestavam tão somente a conexão (SVA), ou seja, a autenticação do IP do usuário junto às redes de telefonia das grandes operadoras de telecomunicações.

Como o passar do tempo, aprimoramento das tecnologias, aumento da demanda, preços elevados dos insumos de telecom, dentre outros fatores, os ISPs (Internet Services Providers) passaram a construir suas próprias redes de telecomunicações, como forma de possibilitarem a prestação da conexão, de forma mais autônoma. Porém, este passo de crescimento tecnológico e operacional dos provedores teve um efeito jurídico, em 2001 a Anatel editou a Resolução 272/01 que regulamentou o SCM (Serviço de Comunicação Multimídia) serviço de telecomunicações de interesse público, prestado mediante autorização e no regime privado, ou seja, segundo ditames constitucionais da atividade econômica, em especial livre iniciativa. E a partir de então temos a internet fixa sendo prestada tanto por provedores regionais de internet, como por operadoras de grande porte, todas no mesmo formato, autorizadas pela Anatel, porém, com a sensibilidade da regulamentação para questões de poder de mercado e assimetria, para equilibrar as desigualdades de porte empresarial.

Este modelo de prestação de serviços de internet que temos no Brasil é bastante singular, pois o mais comum é que essas atividades sejam desempenhadas pelas grandes operadoras em mercados de concorrência imperfeita, monopolizados ou semi-monopolizados. Eis que esta realidade a ser festejada e protegida conforme a regulamentação da Anatel tem buscado fazer, também traz inúmeras dificuldades de estabilização jurídica, em diversas áreas, como a própria regulatória, a tributária e a consumerista, isso sem contar os efeitos macro e micro-econômicos. Este cenário nos leva à necessidade de atenção redobrada no exercício executivo, legislativo e judiciário, que precisam estar atentos e serem conhecedores profundos destas características peculiares do mercado de provimento de internet, sob pena de movimentos legítimos e bem intencionados terem impacto fatal neste modelo que contribui para a livre, ampla e justa concorrência e que em última instância, o grande beneficiário é o consumidor.

Como o advento da pandemia de COVID-19 instalou-se situação caótica do ponto de vista do sistema jurídico aplicável ao setor de internet, eis que o Decreto que determinou a essencialidade deste serviço de certo modo deu início a diversas manifestações e atos públicos totalmente dissociados da realidade jurídica a que estão sujeitos os provedores de internet.

A essencialidade deste serviço não é novidade, eis que o Marco Civil da Internet detém esta previsão e ainda contra fatos não há argumentos, é evidente que internet é de fundamental importância, ainda mais nestes tempos calamitosos e que exigem ações de isolamento. Porém, essencialidade, interesse público, regime jurídico público, regime jurídico privado, serviços públicos e serviços privados são conceitos que se tangenciam em determinados aspectos, mas que não se confundem.

Ainda, a mistura imprópria destes elementos jurídicos pode trazer efeitos graves e irreparáveis a um setor que como a legislação mesmo determina é essencial.

Nosso posicionamento é por rápida ação parlamentar federal, não para mudar algo no sistema de leis que regulam o setor, mas para reiterar a eficácia e exigibilidade destas regras (Constituição Federal, Lei Geral de Telecomunicações, Código Civil, Marco Civil da Internet, Resoluções da Anatel, Normas do MCTIC…) que estão sob perigo de serem infringidas e desconsideradas em face de iniciativas que buscam por exemplo, proibir o corte do serviço para inadimplentes.

Assim, nos filiamos a iniciativas que buscam segurança jurídica, com a busca de uma solução vertical, como algumas empreendidas pela sociedade civil organizada junto aos parlamentares, de levar a conhecimento o sistema jurídico que regra o setor. Sob pena da pulverização horizontal de ações desordenadas não contribuírem para a resolução ou mínima estabilização dos direitos em questão.

É fato que todo o mercado sofre com a desaceleração e retração da economia causados pela pandemia e os provedores de internet, que atuam próximos ao usuário são muito sensíveis a esta realidade e tem feito todos os esforços para contorná-los. Porém, há que se reconhecer que super onerar os ISPs com absorção de perdas imprevisíveis somente poderá trazer mais prejuízo e em larga escala, pois  os mesmos não terão recursos para manter o fluxo de caixa necessário para a operação ou ainda para fazer os investimentos em ampliação e manutenção dos serviços pelo crescimento da demanda, ônus naturais dentro do regime em que atuam, desde que tenham a fonte de receita.

Isso a considerar que os serviços de internet são prestados no regime privado, ou seja, os provedores regionais são empresas de pequeno e médio porte que contam com seus próprios recursos advindo de receitas operacionais para atenderem o que hoje se sabe ser a maior parte dos consumidores brasileiros.

Consumidores de internet tem seus amplos direitos assegurados no Código de Defesa do Consumidor e ainda em Resolução da Anatel, de n. 632/14, que estabelece regras específicas direcionadas ao consumidor de telecomunicações, inclusive de SCM, contemplando regras de atendimento remoto e presencial, formas de cobrança, suspensão e interrupção de serviços, dentro diversas outras disposições. Quanto à dúvida mais polêmica neste momento de incertezas, até o presente momento, não se tem conhecimento de alteração nas regras de cobrança e efeitos do inadimplemento, que podem ser ao final dos procedimentos previstos pela Anatel, o bloqueio do serviço. Evidentemente, os provedores têm agido com bom senso e sensibilidade, tratando casuisticamente cada situação dentro de suas peculiaridades e possibilitando parcelamentos, alteração de planos e uma gama de outras alternativas, tendentes à superação deste momento de crise. Mas o direito ao bloqueio dos serviços de inadimplentes, por hora, se mantém inalterado, exceto em estados que editaram decretos e/ou leis emergenciais que contemplam regra que desautoriza a interrupção dos serviços de internet, mesmo diante do não pagamento.

Assim, nos parece que a alternativa mais salutar seria o uso de recursos de fundos do setor, que existem justamente para fazer frente a situações especiais, com custeio dos serviços dos provedores de internet e atendimento da necessidade emergencial da população.

 

Post by abreufattori

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